Toquinho conta como recebeu esse chamado: "No começo da tarde, quando acordei, minha mãe tinha um recado, para eu ligar para o Vinicius de Moraes. Peguei aquela ponta de papel de pão com o número escrito por Dona Diva. Sonolento, não sabia se ainda dormia, e sonhava, ou se tudo aquilo era real. Por via das dúvidas, não custava conferir. Do outro lado da linha, a constatação, era a voz do poeta, sem rodeios, direta: Toco? É Vinicius de Moraes. Gostei muito do seu trabalho naquele disco produzido pelo Bardotti, na Itália. Estou indo para uma temporada na Argentina com uma cantora nova, a Maria Creuza, e preciso de um violonista. Que tal, Toco, topa?"
O curioso é que, entre os sonhos adolescentes de Toquinho e o inesperado telefonema de Vinicius procurando-o, eles haviam se falado apenas uma vez, e muito superficialmente. Voltaram a se falar alguns anos depois, quando Vinicius ligou para Toquinho convidando-o para trabalharem juntos. "Evidente que não pensei duas vezes, tratei de arrumar as coisas e seguir com ele", afirma Toquinho.
Era uma simples proposta de trabalho na qual prevaleciam o aguçado faro de um poeta consagrado de apenas 56 anos e a vigorosa autoconfiança de um jovem músico, já com 23 anos. Quase nem se conheciam, mas, no mínimo, desconfiavam que cada um carregava consigo o que o outro precisava: Vinicius levando a juventude da experiência, e Toquinho, a experiência da juventude.
Tudo começou a bordo do navio Eugênio C, em junho de 1970, rumo a Buenos Aires. Toquinho fala sobre isso: "Era um tempo em que Vinicius ainda evitava viajar de avião, então fomos para a Argentina de navio. Eu sentia uma sensação estranha, não sabia direito o que é que eu ia fazer lá. De repente, estava a bordo de um navio junto com Vinicius de Moraes, um ser humano grandioso de quem até então eu conhecia quase nada, a não ser o que ele tinha escrito e cantado por aí. Sei que na primeira noite no navio eu passei muito mal, foi um horror. Pegamos uma tempestade no Golfo de Santa Catarina, e eu no meu quarto, enjoado, com tudo a balançar por todos os lados. Até marinheiro vomitava. E Vinicius sentado a uma escrivaninha, segurando o copo para que ele não caísse, e conversando naturalmente, sem se alterar. Ficou lá ao meu lado, como um pai, ou melhor, como alguém com pretensões de se fazer amigo. Nossa relação começou assim, e logo de cara eu passei a vê-lo um pouco como irmão, porque ele não sabia ser velho, o que na realidade ele não era. Chegamos em Buenos Aires uns dois dias antes do final da Copa de 70, e começamos a trabalhar. Assistimos juntos a decisão Brasil x Itália na casa da Silvina e Coco Perez, os donos da boate La Fusa. O Brasil ganhou a Copa, nosso show já fazia um grande sucesso e naquele domingo abrimos o espetáculo com aquela música: "A taça do mundo é nossa/ Com brasileiro, não há quem possa....". Então, minha relação de amizade e conhecimento com Vinicius já se iniciou em meio a esse clima positivo da seleção ganhando a Copa, nosso show em pleno sucesso, aqueles jantares invadindo a madrugada. Houve uma adaptação perfeita entre a gente, porque tudo que Vinicius gostava de fazer eu também gostava: tocar violão, curtir os temas que iam saindo, comer bem, viver a noite ao lado de amigos e mulheres bonitas. Ficamos em Buenos Aires uns 12 dias e fizemos 10 shows, sempre com a boate lotada". Pode-se sentir o que foi esse show ouvindo-se o disco do selo Trova, “Vinicius de Moraes en La Fusa com Maria Creuza y Toquinho”, disco que prossegue em catálogo até hoje, em vários países, proporcionando a Toquinho e Maria Creuza sucessivos convites para shows.
"A vida é a arte do encontro embora haja tanto desencontro pela vida." Já diria Vinicius de Moraes no clássico "Samba da benção", e encontros não faltaram em sua vida . Foram inúmeros parceiros musicais durante a carreira do poeta e diplomata, na qual se destacam Tom Jobim, Toquinho, Baden Powell e Carlos Lyra. Mas a vida também é feita de desencontros.
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Adoniran Barbosa e Vinicius de Moraes nunca se falaram, nem ao menos se conheceram, mas "Bom dia, tristeza", imortalizada na voz de Maysa, registra um parceria de sucesso entre os dois. Bastaram alguns versos rabiscados por Vinicius em um guardanapo e entregue à Aracy de Almeida, amiga em comum dos dois compositores. O sambista natural de Valinhos (SP) assinou a melodia, e a parceria entre desconhecidos estava parida.
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Adoniran Barbosa e Vinicius de Moraes nunca se falaram, nem ao menos se conheceram, mas "Bom dia, tristeza", imortalizada na voz de Maysa, registra um parceria de sucesso entre os dois. Bastaram alguns versos rabiscados por Vinicius em um guardanapo e entregue à Aracy de Almeida, amiga em comum dos dois compositores. O sambista natural de Valinhos (SP) assinou a melodia, e a parceria entre desconhecidos estava parida.
A vida também separou Vinicius de outros parceiros. Ernesto Nazareth não viu uma de suas obras para música popular, o choro "Odeon", receber a letra do poeta. Vinicius, por sua vez, não conheceu a letra que Adriana Calcanhotto fez para melodia composta por ele e Francis Hime nos anos 1970, "Um sequestrador", a pedido do próprio Francis. Música lançada em 2003 no disco Brasil lua cheia, de Francis Hime.
A maioria de seus parceiros era sempre de amigos. Amigos com quem tinha muito cuidado e carinho chamando-os pelo diminutivo, como "Tonzinho" ao se refrir ao seu companheiro de tantas composições e uísques Tom Jobim. Outro nome da MPB que conviveu intensamente com Vinicius de Moraes foi Chico Buarque. O diplotama era amigo dos pais de Chico e frequentava sua casa constantemente. Mesmo assim, Chico e Vinicius moldaram apenas duas músicas em conjunto, "Valsinha" e "Desalento". E contando as composições à seis mãos, ora com Tom, ora com Toquinho, ora com Francis Hime, as músicas não chegam a dez, por mais que não pareça.
Vinicius de Moraes teve encontros que chegam a passar despercebidos. É o caso daquele que gerou "Rosa de Hiroshima", obra composta com Gerson Conrad para o grupo Secos e Molhados e aqui apresentada em versão instrumental sacolejante a cargo da orquestra do maestro Portinho.
O encontro para Vinicius nunca passava em branco. Ocasional, íntimo ou rotineiro, ele ganhava a eternidade em canções e poemas.
REPERTÓRIO
01 - Vinicius, o poeta do encontro - Suzana de Moraes e Paulo Autran
02 - Valsa dos músicos (Vinicius de Moraes e Mutinho) - Miucha
03 - Tudo o que é meu (Alaíde Costa e Vinicius de Moraes) - Alaíde Costa
04 - Mulata no sapateado (Ary Barroso e Vinicius de Moraes) - Mart'nália
05 - Bom dia, tristeza (Adoniran Barbosa e Vinicius de Moraes) - Maysa
06 - Quando tu passas por mim (Antônio Maria e Vinicius de Moraes) - Dóris Monteiro
07 - Um sequestrador (Francis Hime, Vinicius de Moraes e Adriana Calcanhotto) - Francis Hime e Adriana Calcanhotto
08 - Odeon (Ernesto Nazareth e Vinicius de Moraes) - MPB-4 e Quarteto em Cy
09 - Eterna despedida (Luiz Roberto Oliveira e Vinicius de Moraes) - Márcia
10 - Por você (Vinicius de Moraes e Chiquinho Enoé) - Ronnie Von
11 - Poema dos olhos da amada (Paulo Soledade e Vinicius de Moraes) - Sérgio Ricardo
12 - Rosa de Hiroshima (Gerson Conrad e Vinicius de Moraes) - Portinho e sua Orquestra
13 - Sempre a esperar (Vadico e Vinicius de Moraes) - Elizeth Cardoso
14 - Valsinha (Chico Buarque e Vinicius de Moraes) - Chico Buarque
15 - Onde anda você? (Vinicius de Moraes e Hermano Silva) - Toquinho e Vinicius
Vejam a preciosidade que encontrei. Uma carta de Vinícius a Chico Buarque. A carta é primorosa. Traz em seu bojo todas as percepções de um poeta sobre o local e as pessoas que o rodeiam. Escrita em 1968 aquando da turnê de Vinícius com Baden Powell e Márcia, por Portugal, brinda-nos com preciosidades do brasileiro que entra em contato com a linguagem corrente lusitana (para mim que vivo em Portugal, posso entender bem estas impressões). Além de nos dar a conhecer um pouco mais sobre a relação destes dois grandes nomes da nossa música/poesia do século XX.
Por estes dias, Vinícius preparava-se para se apresentar no Teatro Villaret e na boate Ad Lib, em Lisboa. A carta, lida em público antes da apresentação, cai bem no estilo de Vinícius que adorava os shows-recitais.
Eis então a carta…
Lisboa, sexta-feira, 13 dezembro
Chico querido:
Pois, pois. Aqui estamos nós, Márcia, Baden e eu, num dos teatros mais prestigiosos de Lisboa, o Villaret, para fazer um showzinho de música e poesia também, como gostamos de apresentar – bem informal, em comunicação bem íntima com as pessoas. As pessoas, pelo que pude notar, são lindas de morrer. Mas não há perigo. Cristina está presente, e nossa lua-de-mel corre mais doce que ovos moles d’Aveiro. Você já provou ovos moles d´Aveiro, Chico? É de comer em prantos. Melhor que isso só mulher, isto é, Cristina. Pena eu estar em dieta de emagrecimento. Mas felizmente não estou em dieta de Cristina.
E você, Chiquinho, como vai essa gravidez? O “miúdo” já está a se revelar um novo Pelé no ventre paterno, aos pontapés, ou tem tendências abstratas, como os poetas novos, aos quais ninguém ouve? Diga a Marietinha que não se preocupe não, porque tudo vai correr muito bem para você. Faça respiração de cachorrinho durante as contrações, como manda o método Lamase, e você não vai sentir dor alguma – ouviu, papai inchado? E por falar nisso, “miúdo” aqui é o equivalente de menino. E trem é comboio. E alô é tá. É engraçado e bonito. E quando uma pessoa é muito bacana, caindo de bossa, diz-se que tem piada, que é giro. Você aqui teria muita piada, seria “girérrimo”.
Ontem, consegui falar com o nosso querido maestro Antônio Carlos Jobim em Las Vegas, onde ele está com o Frank Sinatra, trabalhando num novo disco. Pois imagina que disse só assim à telefonista internacional – “olha aqui, minha filha, eu preciso muito falar com o maestro Tom Jobim nos Estados Unidos, sei que ele está gravando com o Frank Sinatra. Me podia fazer o favor de caçá-lo para mim?” E dez minutos depois ouvi a voz de Tom que me perguntava: “Onde está você?” E eu respondi: “Em Lisboa”. E ele disse: “Que coisa boa!” E eu lhe perguntei: – E eu lhe pergunto: – E você onde está?” E ele retrucou: “Estou em Las Vegas” E eu: “Ai não me pegas”.
E ele falou: “Que estás fazendo?” E eu respondi: “Um show com o Baden e a Marcinha”. E ele, com um profundo suspiro intercontinental: “Ah, que coisinha!” E meu parceiro sabe o que diz!
***
Fiquei contente em saber que você tirou o primeiro lugar no júri popular do IV Festival da Record. Eu acho que os festivais brasileiros estão se transformando em verdadeiras partidas de futebol – eu por exemplo, enquanto eles estiverem assim, não mais participarei, pois detesto todo gênero de competição. Mas gostei de conhecer o Eusébio, com quem bati um papo ameno, depois do jogo entre o Benfica e o CUF. Você sabe, Chico, que Cristina é torcedora do Flamengo tão violenta que embora nós tivessemos sido convidados para o jogo pelo CUF, em recinto privado, ela teve o topete de agitar uma flâmula do Benfica, que é o correspondente português do Flamengo, e torcer por sua vitória? Eu confesso que tive medo que os dirigentes do CUF nos chutassem para “córner”.
Estou contente porque vamos passar o Natal juntos em Roma e tomar um porre firme e cantar juntos e dar muitos “manguitos” (que é o correspondente de banana) para as estátuas dos imperadores romanos. Foi em Roma que eu conheci você menino, e você, seu safadinho, enquanto eu bebia com seu pai, ficava no alto da escada, no meio da madrugada, só para nos ouvir cantar.
***
Marcinha chegou hoje. Agora nós vamos começar nosso “show” naquela base simples de amor e comunicação como você, Baden e eu gostamos de fazer – e Marcinha de interpretar. O que nos motiva é o amor. Não é o amor que move o Sol e outras estréias, como disse Dante Aligheri?
Marcinha chegou hoje. Agora nós vamos começar nosso “show” naquela base simples de amor e comunicação como você, Baden e eu gostamos de fazer – e Marcinha de interpretar. O que nos motiva é o amor. Não é o amor que move o Sol e outras estréias, como disse Dante Aligheri?
Outro dia minha mulher riu-se muito quando eu lhe disse que o amor cura o câncer. E cura mesmo! E não é outra a razão porque Márcia veio de São Paulo, Baden de Paris e eu do Rio, para esta comunicação linda e indispensável à nossa vida de artistas. E ao levar a vocês nossa poesia e nossas canções, nós o fazemos – insisto mais uma vez em dizê-lo – só por amor. Só amor.
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